quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fruição

Aqui, entre um gole e outro de chá, tenho meus momentos de fruição. Lembranças, ressonâncias mentais, lamentos. Os últimos dias dos últimos meses têm passado tão depressa que sorvo meus instantes de solidão, tentando deles extrair o que de melhor podem me oferecer. Quantas surpresas. Algumas felizes, outras nem tanto, mas de repente o tempo resolveu voar.
Você voou. Já não está mais comigo. Descolou-se de mim. Nosso "decalque amoroso-intelectual" já não é tão poderoso. Será tal fato bom ou ruim? Continuo cheia de questionamentos, entretanto, agora, vejo as transmutações com outros olhos. Leio o mundo de outra maneira. Você continua em meu pseudo-universo, tão frágil e falso como outrora.
Eu endureci. Meu barro adquiriu outra forma. Meu oleiro está trabalhando sem cessar dentro de mim. Todavia, é um labor silencioso, taciturno. Quem sabe só mais tarde você enxergue quem eu sou. Quem sabe o tempo seja seu oleiro, quem sabe a ação corroa seus credos e dissipe suas certezas.
Eu te espero...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O gozo estético

TORRENTE
Vitor Ramil

Maio de 1941. Junto à janela do quarto, aberto à luminosidade da esquina e à movimentação discreta da companhia de seguros no andar térreo, escrevo. Porto Alegre está no branco da página; o texto flui, caudaloso, nas águas do Guaíba. Palavras da superfície, querendo ser densas, vão ao fundo; palavras das profundezas, querendo leveza, sobem à procura do sol. Revoltas e misturadas desde a foz, ganham pelos caminhos a aparência de palavra única, primordial, ao mesmo tempo em que conferem à própria ilegibilidade um fluxo sempre renovado de sentido. A cidade, em sua brancura cartesiana, as espreita. Há tensão ao longo da margem, onde, de alto a baixo, as palavras perdem o sentido. É da natureza do Guaíba querer avançar em busca desse sentido, mas é da natureza da cidade tentar preservar-se em sua solidez silenciosa. Os funcionários da companhia de seguros alteram sua rotina, fechando as portas antes do fim do expediente e indo imediatamente para casa. Todas as outras portas da rua são igualmente fechadas. A apenas duas quadras do leito maior, meu carro é o único ainda estacionado no meio-fio. Mas não pretendo guardá-lo. Nem tenho mais tempo para isso. A margem já cedeu. As palavras se expandem rapidamente, transformando fragmentos de pesadas e confusas reflexões em longos e não pontuados períodos da mais arrebatadora poesia. E as ruas logo se enchem de sentido. Entreabro a janela para escutar o som delicioso da água batendo contra as paredes do prédio. Porto Alegre está no texto. Seus porões ganham vida e se põem a nadar como seres sombrios do grande lago em que parte dela se transformou. Os porões adquirem voz. Os porões se comunicam. O quanto de Porto Alegre é dito por eles? O que é dito irá se entranhar nas paredes, subirá aos pisos mais elevados, poderá encharcar a cidade alta até transformá-la em uma única palavra? O mais provável é que, ao baixar, o Guaíba leve junto a voz da cidade que veio à tona; que a face romântica da arquitetura de Porto Alegre desapareça junto com seu reflexo na água; que os moradores selem seus porões e relembrem estes dias como os de uma tragédia; que o branco da página seja restabelecido e mantido com a construção de um muro de contenção. Seja como for, permanecerei aqui, a duas quadras do leito maior, escrevendo (as palavras se infiltraram onde vivo, se depositaram no que sou). Meu carro terá sido arrastado ou vendido como sucata. Mas sua capota preta continuará visível lá fora, boiando, a pontuar suavemente a torrente do que eu vier a escrever.

Diletantismo

1.  O frio geometriza as coisas** (...) perder-me no nevoeiro tendo em vista a concretude da cidade (...) à tarde, a delicadeza das fachadas contra o horizonte selvagem da planície o emocionou (...) Uma moeda na areia grossa, formigas miúdas, folhas de figueira, tudo era aparição. O grito das crianças e o latido dos cachorros podiam ser tocados (...) Tirou esta rua de seu pensamento e agora avança por ela (...) Seus olhinhos amanhecidos evitam a noite que se demora nos meus (...) Um acordeom, como tudo entre nós, não era simplesmente um acordeom (...) Quando parecia não haver restado nada, ali estava eu (...) ante-salas do dia, forros inatingíveis, paredes indistintas que se abrem (...) a um só tempo, projeção em minha mente e onde minha mente se projeta (...) E dentro de mim a tempestade já desabou do outro lado do rio (...) brindamos, um de cada vez, à extensão, à nitidez, à profundidade (...) por expressar uma voz íntima, essencial (...) Anaxímenes afirmava que o condensado da matéria é frio (...) que se opõem a todo o excesso, a toda a redundância (...) E a música me convidava a seguir seu traçado vermelho e sinuoso de escaiola (...) Satolep revelada na radicalidade dos ângulos retos, infalível como o relógio alemão na torre sobre o Mercado, espalhando-se ao redor como um argumento inexorável, não comporta seu coração em desordem, sua mente turbilhonada (...) Blau Nunes me pusera tão nos longes que eu nem vira anoitecer (...) cerração, crepúsculo, noite sem lua (...) como um selvagem que estivesse ali desde antes de toda simetria (...) aquela paisagem, altamente definida, parecia aguçada. As coisas abrigavam-se em si mesmas (...) despidas de qualquer ornamento que pudesse obscurecê-las (...) Acerquei-me dele num bordoneio lento, repetitivo, emocional (...) densidade e espaços vazios combinados (...) vozes e palavras saindo da sugestão sonora da melodia (...) suas intervenções deslizando na troca sutil de acordes (...) A cidade toda, com suas ruas retas e planas, dava vazão à harmonia. (...) A descrição objetiva revelou-se uma arquitetura ao mesmo tempo densa e rarefeita, na qual minha atenção se descolava do concreto e era absorvida pelas texturas dos vazios (...) outra vez a paisagem da milonga, poucos elementos num espaço desmedido (...) Só o futuro era certo, o passado era uma contingência (...) simetria é onde a assimetria se esconde e se afirma (...) era eu entre as palavras (...) treinando os olhos na detecção dos sólidos para que minhas lágrimas tenham conteúdo (...) instante daquela luz, luz daquele instante (...) uma travessia por entre coisas que nunca tiveram nome (...) Estamos a caminho de expressar a transição, entre os países do Prata e o Brasil, que é este lugar e que somos nós (...) A caminho de uma estética do frio (...) palavras que continuavam dando voltas (...) No horizonte aberto, onde tudo era exposição (...) Olhos que não dão descanso (...) Depois andei até a casa, repetindo o avanço em contraponto (...) O som metálico propagou-se com uma beleza inesperada na vastidão quieta (...)  Nascer leva tempo.

 Vitor Ramil

Daniuschka - Zagucha

É...Nosso tempo não tem sincronia. Pra mim, tudo é diacronia. Meus medos, tuas coragens. Minhas vontades, teus desejos. Sempre e nunca. Fugaz e eterno.
Queria poder acertar nossos relógios. Retroceder ou quem sabe avançar muitíssimo. Entretanto, não consigo. Meu ritmo é lento, minha composição não é tão híbrida. Minha restriçao te limita, e tu não tens fronteiras. Beiras muitas sensações, mas adentras em poucas. Não te permites. Já eu, mergulho fundo demais e asfixio quem comigo estiver, porque seguro com força demasiada. Praticamente aprisiono.
Saturada, saturo-te rápido e com isso, tu segues criando percursos alternativos. Minha previsibilidade e tuas surpresas. Tuas defesas e minhas fragilidades.
Não sei se o tempo tornar-nos -á compatíveis.
Peut-être!