quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O gozo estético

TORRENTE
Vitor Ramil

Maio de 1941. Junto à janela do quarto, aberto à luminosidade da esquina e à movimentação discreta da companhia de seguros no andar térreo, escrevo. Porto Alegre está no branco da página; o texto flui, caudaloso, nas águas do Guaíba. Palavras da superfície, querendo ser densas, vão ao fundo; palavras das profundezas, querendo leveza, sobem à procura do sol. Revoltas e misturadas desde a foz, ganham pelos caminhos a aparência de palavra única, primordial, ao mesmo tempo em que conferem à própria ilegibilidade um fluxo sempre renovado de sentido. A cidade, em sua brancura cartesiana, as espreita. Há tensão ao longo da margem, onde, de alto a baixo, as palavras perdem o sentido. É da natureza do Guaíba querer avançar em busca desse sentido, mas é da natureza da cidade tentar preservar-se em sua solidez silenciosa. Os funcionários da companhia de seguros alteram sua rotina, fechando as portas antes do fim do expediente e indo imediatamente para casa. Todas as outras portas da rua são igualmente fechadas. A apenas duas quadras do leito maior, meu carro é o único ainda estacionado no meio-fio. Mas não pretendo guardá-lo. Nem tenho mais tempo para isso. A margem já cedeu. As palavras se expandem rapidamente, transformando fragmentos de pesadas e confusas reflexões em longos e não pontuados períodos da mais arrebatadora poesia. E as ruas logo se enchem de sentido. Entreabro a janela para escutar o som delicioso da água batendo contra as paredes do prédio. Porto Alegre está no texto. Seus porões ganham vida e se põem a nadar como seres sombrios do grande lago em que parte dela se transformou. Os porões adquirem voz. Os porões se comunicam. O quanto de Porto Alegre é dito por eles? O que é dito irá se entranhar nas paredes, subirá aos pisos mais elevados, poderá encharcar a cidade alta até transformá-la em uma única palavra? O mais provável é que, ao baixar, o Guaíba leve junto a voz da cidade que veio à tona; que a face romântica da arquitetura de Porto Alegre desapareça junto com seu reflexo na água; que os moradores selem seus porões e relembrem estes dias como os de uma tragédia; que o branco da página seja restabelecido e mantido com a construção de um muro de contenção. Seja como for, permanecerei aqui, a duas quadras do leito maior, escrevendo (as palavras se infiltraram onde vivo, se depositaram no que sou). Meu carro terá sido arrastado ou vendido como sucata. Mas sua capota preta continuará visível lá fora, boiando, a pontuar suavemente a torrente do que eu vier a escrever.

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