quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A vírgula

Existe um poema de Lord Byron criado por volta de 1800 cujo título é Não Mais Passearemos.
Em certa estrofe do poema ele constrói a seguinte frase: "chega um instante em que o coração precisa tomar fôlego e o amor enfim, descansar." Embora todo o poema seja admirável o que mais nele me fascina é esta vírgula após a palavra enfim. Acho que nunca -em tudo que já li- encontrei uma vírgula tão perfeitamente colocada e capaz de dar ao verbo a respiração exata para seu simbolismo de repouso.
Lembrem que quando a maioria não sabia ler as poesias eram feitas para serem ouvidas.
Graciliano escreve praticamente sem vírgulas do mesmo jeito que Herbert Marcuse também era econômico com elas. Já Vinicius de Moraes abusava delas.
Embora não seja exatamente um consagrado escritor eu vivo das palavras como profissão e de mim já disseram que trabalho com um balde de vírgulas ao lado do note book e de vez em quando jogo um pouco delas sobre o monitor. Depois que ouvi esta avaliação passei a prestar mais atenção no uso das vírgulas e a frase do poema de Byron tornou-se mais constante em meu pensamento.
A vírgula existe para ser usada ao bel prazer de quem escreve ou existem normas que regulem
a sua aplicação? O corretor ortográfico do Word vive nos dizendo que não se separa com vírgula o verbo do sujeito. É uma regra. Mas em determinados momentos a separação parece indispensável tal a necessidade de darmos destaque à ação que se descreve.
Eu acho que a vírgula traz para o texto a maneira de falar de quem escreve. Algumas pessoas falam através de frases curtas e para elas basta um ponto de seguimento. Outras falam longamente e fazem suas pausas para respirar com uma interjeição qualquer e prosseguem falando. A prosa do nosso notável antropólogo e sociólogo Albergaria é algo assim. Sem vírgulas.
Também este texto está escrito até aqui sem que eu tenha utilizado uma única vírgula à exceção daquela citada na frase do poema de Byron. Será que este texto é melhor sem as vírgulas que se eu tivesse usado o meu balde? Não sei. Oscar Wilde disse que não existem livros bons ou livros ruins. Existem livros bem escritos ou mal escritos. Eu gosto de vírgulas embora perceba que já não uso um balde cheio delas e sim um simples copinho descartável de café. Mas me atrevo sempre que julgo necessário a separar o verbo, do sujeito.
A Interrogação
"E se você dormisse, e se você sonhasse, e se no sonho você fosse ao Paraíso e encontrasse uma rosa, e colhesse uma rosa, e se você acordasse e a rosa estivesse em suas mãos, e então?" Esta pergunta é famosa na literatura e é conhecida como A Questão de Coleridge, poeta que a formulou. O que faz uma interrogação no meio de um texto?

Ela chama a sua atenção para algo importante que em seguida será explicado por que está escrevendo. Ou não. Algumas interrogações se dão ao luxo de não apresentarem qualquer resposta em seguida, assim como a vida tanto costuma fazer conosco. São interrogações colocadas alí para que o próprio leitor pense sobre ela e descubra uma resposta.

Interrogações deste tipo são como determinadas mulheres que ao passarem por você te lançam
um olhar penetrante como um punhal, porém não diminuem o passo e muito menos olham para trás pelo canto do olho para ver a sua reação. E qual é a sua reação? Volta e tenta falar com a interrogação que passou ou segue em frente com ela na cabeça? Aí complica, pois a reação de cada um diante de uma interrogação que passa sedutora depende de coisas que remontam à infância e nem adianta apelar para Freud, pois que ele sempre costumou deixar mais interrogações que respostas, embora todos não hesitem em afirmar: Freud explica.
Em certo momento, questionado sobre o havana que trazia constantemente aceso entre os dedos, ele proclamou: um charuto às vezes é apenas um charuto. Explica?
A Reticência -
Existe uma entre as tantas historinhas que são criadas o tempo todo para terminarem com um ensinamento, pela qual eu tenho uma certa simpatia. Acho que tenho, pois nunca esqueci dela enquanto tantas outras foram direto do ato de ler para o alívio de esquecer. Ela fala de dois monges de uma religião tão absolutamente rígida quanto ao celibato a ponto de não permitir que seus seguidores sequer tocassem numa mulher. Pois bem. Estes monges, um mais velho e outro noviço, seguiam caminhando pelas margens de um rio orando em silêncio. Em determinado ponto do rio, encontram uma mulher que hesitava em atravessar as águas ligeiras e fortes da corrente para alcançar a outra margem.
O monge mais velho, ao perceber a sua ansiedade, não hesitou em tomá-la nos braços e carregando-a atravessou o rio deixando-a na outra margem. Sempre seguido pelo noviço, ele continuou sua caminhada silenciosa, até que não contendo mais a dúvida, o noviço alcançou
o monge mais velho e perguntou-lhe: "Mestre, aprendemos que nos é totalmente proibido tocar numa mulher e no entanto tu a tomaste em teus braços e a carregastes". O velho monge, sem diminuir o passo respondeu-lhe: "Carreguei aquela mulher apenas no instante que ela precisava para atravessar a correnteza. Tu a carregas até agora."
Acho que aí está uma reticência. Embora abolida por uma das nossas tenebrosas reformas ortográficas, a reticência sempre serviu para deixar no ar uma suspeita ou uma explicação
sem dizê-la diretamente. Uma forma talvez de fazer com que o outro se sinta responsável
pela compreensão daquilo que não foi dito. Raramente uso reticências. Sempre preferi ir até
o fim com o meu pensamento e da forma mais clara que posso. Talvez o fato de escrever textos publicitários me tenha levado a isto. Talvez eu seja assim mesmo. E isto é uma dúvida, não uma reticência.
O Silêncio
Há algumas semanas, quando arrumava uns recortes de jornais e alguns cadernos de cultura da Folha de São Paulo que insisto em guardar, encontrei uma matéria especial sobre Jorge Luis Borges, o escritor argentino falecido (morreu em 1986, em Genebra, aos 93 de idade e cego desde os 50) que me abriu as portas do pensamento livre e do realismo fantástico.
Tenho todos os seus livros, leio e guardo tudo dele ou sobre ele, pois "El brujo" sem dúvida foi o escritor mais importante do século XX. Nesta matéria está reproduzida uma carta escrita por Borges, onde em certo trecho ele diz: "Recorda-me uma moça a quem fiz a corte em Palma e da qual cada silencio era uma obra de arte".
Acho que o conceito borgiano de silencio concebido, trabalhado como uma obra de arte é de uma profundidade absoluta. Somente coisas especiais merecem obras de arte a respeito, sejam elas músicas, poemas, pinturas ou silêncios.
Como para quem escreve o silêncio é simplesmente não escrever, chegamos à conclusão que desde a primeira palavra deste artigo até aqui, tudo o que fiz foi um imenso ruído.

Artigo de autoria de Marco Gavazza

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