segunda-feira, 17 de maio de 2010

Pessoas e Personificações

A partir do texto abaixo, pretendo fazer digressões sobre pessoas que passaram por minha vida, o que elas significaram (personificaram), e o sentido que para mim adquiriram. Os nomes adotados serão fictícios, para que nenhuma celeuma ou desconforto possa vir a ocorrer. Tal medida, também visa à preservação da integridade de cada um.


Aquela menina, o começo de minha dor!

Lembro-me exatamente do dia que conheci Lívia. Eu contava naquela ocasião sete anos e era meu primeiro dia de aula na primeira série do que então chamávamos à época de Primeiro Grau.
Cheguei atrasada, pois minha mãe havia se atrapalhado com os afazeres domésticos, posto que ainda se encontrasse em ritmo de férias. Não havia mais lugares vagos. A turma era enorme e deveriam existir aproximadamente cinqüenta crianças naquela classe. Buscaram para mim uma mesa e uma carteira em uma sala contígua. Acomodaram-me logo na primeira fileira, bem na pontinha.
Em seguida virei para o lado e dei com os olhos nela. Achei feia. Usava trancinhas em todo o cabelo, tinha orelhas de abano e bochechas avantajadas. Dona de uma magreza exasperadora (mas essa era igualmente uma de minhas características). Reparei que Lívia era também muito pobre. Seu material escolar denotava humildade, uma caixa de lápis-de-cor pequena, uma pastinha de plástico cor –de- rosa e alguns poucos giz- de- cera dentro de um estojinho de madeira precário.
A escola em que estudava era particular, e a maioria das crianças dispunha de grande quantidade de materiais como canetinhas hidrocor, lapiserias, mochilas vistosas e coloridas e etc. Por tais razões, causava estranhamento que algumas crianças não possuíssem o que era quase “comum” a todos.
Passei alguns minutos observando o que Lívia fazia. Ela era popular, conversava e copiava a lição ao mesmo tempo. Notei que todas as meninas a escutavam com máxima atenção.
Os dias foram passando e eu fui conhecendo mais detalhadamente aquela que se tornaria a algoz de meu destino. A pessoa que mais importância teve em minha personalidade e meu jeito de ser até os dias de hoje! Mais influente e preponderante que meus pais, sem que com esta afirmação haja qualquer exagero de minha parte.
Lívia era extremamente inteligente e bem articulada. Aprendia todas as lições como num passe de mágica. Quando um exemplo de bom aluno era dado, lá estava a referência honrosa , explícita e permanente a ELA! Todos os meus colegas, fossem eles meninos ou meninas, “gravitavam em seu eixo”! Todos queriam juntar seu lápis, sentar ao seu lado, fazer fila atrás ou em frente dela.
Eu fui observando tudo aquilo e ficando muitíssimo curiosa. Queria saber o que aquela menina possuía de tão especial. Até que um dia, seu fascínio me atingiu.
Havíamos terminado a lição de cópia. Sobrando algum tempo para o término da aula, a professora distribuiu um desenho em que devíamos colorir livremente uma figura. Acontece que eu só levava meus lápis –de-cor para a classe quando tínhamos aulas de Artes Aplicadas. Fora desses dias, minha mãe não me permitia carregá-los, pois minha mochila ficava exageradamente pesada. Eu não dispunha de material necessário para realizar a tarefa, então pedi à colega que sentava ao meu lado, que me emprestasse um de seus lápis. Ela virou-se para mim e com ar de desprezo disse: “Eu não empresto nenhum material meu!”.
Fiquei com vergonha, e já estava desistindo de colorir a figura quando Lívia presenciando o ocorrido, disse à colega que havia me negado o lápis: “Como você é egoísta! Sabia que pessoas egoístas ficam pra sempre sozinhas?!”. Dizendo isso prontamente me ofereceu seus parcos e desgastados lápis de cor.
Tal gesto causou-me profunda impressão e a partir daquele dia e daquele momento, tornamo-nos amigas. Éramos inseparáveis. Éramos ótimas alunas, tínhamos os melhores desempenhos. Entretanto, Lívia era mais popular e suas notas eram décimos maiores que as minhas. Mas ainda assim brilhávamos como as “estrelinhas da turma”.
Lembro-me que meu desempenho escolar era motivo de tanto orgulho, que meu pai quando recebia meu boletim, pegava-me no colo e literalmente “atirava-me” inúmeras vezes para cima, em sinal de fragorosa felicidade.
Um ano depois, já na segunda série do Primeiro Grau, logo no primeiro dia lá estávamos nós. Sempre juntas.
Tudo corria bem, todavia, tornei-me uma menina bastante rebelde. Com o tempo, comecei a achar as atividades propostas pela professora um tanto idiotas. Não queria mais fazer meus deveres de casa e em aula negava-me a participar das tarefas, pois achava TUDO bobo e enfadonho demais.
Meu comportamento insurgente fez meu desempenho despencar e com isso começou meu sofrimento.
Lívia passou a não querer mais ser minha amiga. Quando eu me aproximava, ela saía. Depois, começou a pedir que eu me retirasse das brincadeiras. Nossa! Como aquilo doía!
Eu não entendia direito o motivo do desprezo. É claro, sabia que as atitudes estavam relacionadas às minhas notas (já não mais as melhores). Contudo, em meu estreito ponto de vista, minha revolta era plenamente justificável. As aulas eram estúpidas e eu estava certa em não querer fazer nada. Acreditava inclusive, que Lívia estaria de acordo comigo. Mas não foi o que se sucedeu.
Perdi minha amiga, perdi o fio da meada, perdi meu prestígio. Fiquei perdida durante muitos, mas muitos anos. Talvez ainda hoje esteja perdida.
Durante minha vida escolar pude acompanhar o progresso de Lívia. Estudamos na mesma Instituição todo o Primeiro e Segundo Graus. A menina de orelhas de abano seguiu brilhando ano após ano. Foi líder de turma, líder de torcida, ganhou destaque em Feiras de Ciência e concluiu seus estudos tornado-se emblemática na escola. Todos a adoravam!
Ingressou sem dificuldades no curso de arquitetura de uma das melhores universidades do país. Como decorrência do sucesso, foi morar na Suíça só retornando ao Brasil anos mais tarde. Transformei-me em uma espécie de espectadora da vida de Lívia por um tempo considerável.
Fui uma boa aluna e conquistei meu espaço. Alcancei meus objetivos, mas o fantasma daquela menina perseguiu-me até bem pouco tempo, quando então pude compreender que as coisas não eram exatamente como as enxergava. Notas ou o meu desempenho acadêmico não faziam minha felicidade e nem conquistavam amigos leais. Entendi tarde demais que meus valores morais subjazem minha posição intelectual. Creio que tenha desperdiçado tempo, vida e energia com uma obsessão infundada.
Lívia depois de formada casou-se e tornou-se uma mãe dedicada e uma arquiteta medíocre. Hoje desenha torneiras, pias e lavabos. Nada diferente da grande maioria da população. Nada espetacularmente melhor ou mais significativo do que restante da humanidade.
Então por que perdi tanto tempo com ela? Qual a lição?
Equilíbrio. Esse foi o meu grande ensinamento.
Ter objetivos é salutar, mas deixar com que se transformem em obsessões, faz com que nos tornemos doentes, amargurados e solitários.
Ninguém vale tanto em tudo. Nosso espaço será sempre nosso. Não precisamos INVEJAR a vocação alheia, pois esta atitude além de não trazer frutos ainda faz com que percamos NOSSOS momentos, NOSSAS experiências que são intransferíveis. NOSSA vida vale mais a pena do que qualquer outra porque é NOSSA e constitui NOSSA história. TUDO que além disso existir, estará aquém e será RESTO.

Um comentário:

  1. dani adorei,o valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. beijos

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